Falta de ar em Manaus é o retrato macabro de um país que aboliu a metáfora

Não é a primeira e, lamento, não será a última vez que cito o diagnóstico da amiga Camila Kfouri em uma postagem no Facebook no já distante 2016: "o Brasil não é um país de metáforas".
Metáfora, para quem faltou à aula, é a figura de linguagem que produz sentidos figurados por meio de comparações. É o que permite dizer que estamos um "caco" sem nos converter, necessariamente, em fragmentos de garrafas de vidro.
Só que no Brasil os sentidos literal e metafórico se amalgamam na travessia do absurdo. A ponto de a expressão "mar de lama" soterrar a alegoria junto com as vítimas e rastros de destruição das barragens mal construídas, como em Mariana e Brumadinho.
Aqui, epidemia de "zica" não é sinônimo de má sorte, mas um drama para infectados com o vírus homônimo.
Na postagem, a Camila lembrava também o projeto "Ponte para o futuro", jogada de marketing do governo Michel Temer (MDB), lançado no momento em que um prefeito do mesmo partido tentava explicar o desabamento de uma ciclovia em uma ponte no Rio de Janeiro.
Alguns anos se aram desde então. E pouca coisa mudou, a não ser para pior.
Neste país que aboliu a metáfora, a falta de oxigênio já não é sinônimo de cansaço, sufoco, necessidade de renovação, mas de asfixia literal, física e dolorosamente real sofrida por quem precisou ser internado em meio a um novo surto de coronavírus em Manaus e não encontrou, no leito hospitalar, cilindros capazes de restabelecer o sistema respiratório atingido pelo vírus.
Desesperadores, os relatos de profissionais da área sobre a situação demonstram uma catástrofe de proporções amazônicas. O oxigênio acabou em instituições de referência, como o Hospital Universitário Getúlio Vargas. Estima-se que uma ala inteira de pacientes morreu sem ar. Um gestor comparou o espaço inicialmente dedicado ao tratamento de pacientes a uma câmara de asfixia.
Essa câmara foi construída pela argamassa da ignorância e do descaso das autoridades públicas, que nada fizeram para controlar a propagação do vírus quando a segunda onda de contaminação já não era sentido figurado nem questão de "se", mas de "quando" chegaria.
Wilson Lima (PSC), governador do estado, chegou a decretar lockdown no momento mais crítico, mas a medida foi alvo de boicote de políticos e grupos bolsonaristas que desdenham os riscos da doença desde o início — e chamam isolamento social e até uso de máscara de "loucura" ou "atentado às liberdades individuais".
O caos é, portanto, resultado direto do limbo e do bate-cabeça entre autoridades que não falam a mesma língua, deixando médicos e equipes de saúde atordoadas com orientações políticas conflitantes.
Para Eduardo Pazuello, ministro da Saúde que pode ter enviado precocemente um avião até a Índia para adquirir vacinas que talvez não existam no estoque, a culpa da tragédia em Manaus é da chuva, que umidifica o ar e causa problemas respiratórios, da falta de estrutura hospitalar da região e da ausência do "tratamento precoce", uma fantasia já desnudada por 10 em cada 10 profissionais sérios de saúde.
Só na capital do Amazonas já morreram quase 4.000 pessoas de covid-19. Quase 300 pacientes buscaram tratamento em um único dia. Resultado: a taxa de ocupação de leitos clínicos alcançou 110% e, como dois corpos não ocupam o mesmo espaço nem em leito hospitalar, as as Forças Armadas precisaram ser acionadas para buscar oxigênio e transferir pacientes. Nada disso seria necessário caso houvesse inteligência, planejamento e comunicação de risco, sem ruído ou sabotagem, para evitar, e não remediar, o colapso.
Em meio ao caos, a sentença "vai pra Venezuela" deixou de ser xingamento em sentido figurado, mas solução para fornecedores suprirem a demanda por oxigênio com a ajuda do país vizinho.
Diante da situação, o governador decretou toque de recolher entre 19h e 6h, e usou uma outra alegoria para expressar a gravidade da situação. "Hoje o estado do Amazonas, que é referência para o mundo, e que todo o mundo volta seus olhares para cá quando há um problema relacionado à preservação ao meio ambiente, está clamando, pedindo por socorro. Considerado por muitos o pulmão do mundo, uma floresta que produz uma quantidade significativa de oxigênio, hoje o nosso povo está precisando desse oxigênio", disse Wilson Lima.
Cientificamente, não é correto dizer que a floresta amazônica é o pulmão do mundo, mas o apelo à metáfora é inevitável no momento em que respirar já não é mais direito básico aos seus habitantes; virou privilégio.
No Brasil, todos são iguais perante o vírus, mas uns são mais iguais que outros quando só alguns têm o aos melhores hospitais. Neste país, direitos básicos não dão em árvore nem são fruto da natureza, mas da luta diária (e permanentemente sabotada) por quem deveria garantir o mínimo do mínimo para viver.
Já não é metáfora, nem exagero, dizer que chegamos ao limite.
E o limite é perceber que em 2021 já não falta só comida, casa, educação para boa parcela dos brasileiros. Falta ar.
E falta ar porque quem foi eleito priorizando a morte, o confronto e o o às armas desdenhou o risco real de as ondas de contaminação se converterem em morticínio. E jurou que o melhor remédio era a imunização de rebanho e a manutenção da normalidade em tempos de pandemia. O importante era salvar o CNPJ. E quase 210 mil pessoas nunca mais voltaram para suas casas ou empregos.
Para quem tem a necropolítica como plataforma política, a preocupação agora é tirar os mortos do colo. Definitivamente, o Brasil não é um país de metáforas.
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